terça-feira, 31 de julho de 2012

Aonde se dorme.

Do lado do cemitério um motel.
Na zona leste, quem passa em frente,
entende, que ali também se morre de amor.

Por Maira Garcia

Sem sopro

A flauta do que me falta,
o que me falta é a flauta.
Por Maira Garcia

sábado, 28 de julho de 2012

Contempla-ção.


Ficava nos olhando, ao longe do cercado, com os olhos rareando o arame farpado, sempre perto das cinco horas da manhã.
Espalhava maçãs esfareladas, banana, um punhado de rosas que iam se abrindo, e seguia percorrendo sua oferenda com tranquilidade em nosso sítio. Via o que queria ver, levava o que queria comer, e assim corriam religiosamente suas visitas.
Nem um piu na presença de quem chegava com a luz, um pouco antes do cantar do galo. Poucos saberiam entrar e sair sem serem notados, como ele fazia.
Nem seu cheiro tão peculiar era sentido. Sabia que me fitava ao longe, por entre as cercas. Não nos queria os ovos, a carne, nem a mim, nem as meninas. O galinheiro acordava todo santo dia em paz, pois naquele sítio, corria um gambá que pelo andar da sua carruagem, os presentes e o olhar comprido das suas entradas farpadas, estava visivelmente apaixonado pelo amanhecer de uma galinha, a esquentar e redescobrir seus ovos.

Maira Garcia

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Dieta do torpedo


E foram disparados torpedos anônimos no celular da Janete. Três vezes ao dia, em horários aproximados. Eram tão inebriantes que ficou sem coragem para saber de quem vinha. Um elogiava sua boca, o outro falava do pescoço, alguns repetidamente descreviam os quadris, as mãos, cabelos, olhos, têmporas, córtex, cerebelo...
Janete começou a esquecer do café e os docinhos da tarde com as meninas do escritório, em duas semanas emagrecia dois quilos, a pele cintilava, comprava roupa nova e aparecia na ginástica.
No final da segunda semana não se aguentando de curiosidade resolveu ligar.
-Alô? Quem fala?
-É Demétrio, em que posso ajudar?
-Meu nome é Janete e venho recebendo há duas semanas do seu celular, três vezes ao dia, torpedos com textos muito doces me descrevendo. São seus?
-Gostou dos torpedos com os textos? Minha nossa! Este é o número da senhora? Que bom que ligou!
E o coração da Janete saiu na escola de samba e percorreu do 17º andar até o térreo, em trinta segundos.
-Caso não tivesse ligado... Segurou a fala e podia-se ouvir Demétrio respirando bem fundo no ouvido de Janete.
Que raios o homem queria falar? Pensou. Não reconhecia a voz, nem lembrava de ter tido alguma coisa com algum Demétrio.
Mordendo a boca, suando frio, Janete tremia e vibrava como as mensagens de celular que chegaram para moderar seu apetite.
-Por favor, continue!
-Se a senhora não tivesse ligado, eu estaria cometendo um erro muito grande!
-Não precisa falar assim, ainda não sou uma senhora!
-Desculpe, Janete!
-E qual foi seu erro, Demétrio?
-Eu sou escritor. Contratei uma ótima revisora, a Inês que aceitou responder as correções dos textos através destas mensagens. Como não chegou a responder nenhuma, desconsiderei o trabalho combinado. O seu gesto ajudou a descobrir o engano e não vou dispensar a moça. Agora mesmo vou procurar o telefone dela e repassar estas mensagens! Muito obrigado!
Do outro lado, Janete emudeceu. O rapaz ainda tentou falar.
-Alô, alô? Imaginando que mulher seria e porque se identificava com as palavrinhas que ainda precisavam de correção, Demétrio achou a situação inspiradora, um bom argumento para uma nova estória.
Da próxima vez, seria ele quem ligaria para Janete com o intuito de conhecê-la.
Do outro lado da linha, Janete ficou muda, suspirou como quem se esvazia por inteiro e agiu como rezam os novos costumes, apagando o telefone e todos os pretextos.
Mais magra por fora e sem mesmas graças por dentro, morrendo de saudades da antiga forma, desceu para tomar o café da tarde com as amigas do escritório para voltar ao velho costume dos doces. No elevador, diante do espelho, colocou as mãos na cintura e concluiu que podia ter demorado mais para ligar para o rapaz. Faltavam duas semanas e apenas dois quilinhos para Janete entrar no seu vestido de noiva.

Por Maira Garcia

sábado, 21 de julho de 2012

Tipo-grafia

Para esfregá-las no peito e verter perfume.
Levá-las ao leito.
Absorvê-las no papel, apenas por elas.
Tê-las, onde não há defeito algum.
Tão bom que fora apenas com elas,
a tipografia sem digital,
da analógica e triste figura.
Mais virtual do que real.
Menos Pessoa, mais fissura.



De noite quem sabe um dia.

Melhor ter poesia para noite e para o dia.
Quem sabe um dia ela te acorda,
Pra dizer boa noite todo dia.

                                             Por Maira Garcia

terça-feira, 17 de julho de 2012

Pernas para que te quero.

Mariana demorou muito para vestir roupa curta na adolescência. 
Seu maior incentivador para novos trajes foi o Pedro, seu amigo e vizinho de prédio que também gostava de meninos como ela, cuja sinceridade e jeito com roupas lhe deram segurança para se mostrar. Descobriram que as pernas da Mariana eram mesmo de parar o trânsito, numa tarde ensolarada, na avenida Brigadeiro Luís Antonio no Centro de São Paulo, indo com Pedro comprar meia-calça na Rua São Joaquim. 
Quando atravessaram a avenida, um motoboy se distraiu com o short da moça e espatifou no chão. Enquanto a ambulância chegava, Pedro e Mariana conheceram a testemunha, o Beto que confirmou com o pessoal do resgate que também viram as pernas. E levaram o motoqueiro Silva, cheio de sangue, para a Santa Casa da Misericórdia. Alguns anos depois, Mariana cobria em definitivo as pernas tornando-se pastora famosa de uma igreja da Rua Consolação. Pedro junto com Beto, formavam na loja de meias da Rua São Joaquim, uma união estável como poucas. 
Perto do local do acidente, na Rua Vergueiro, encontramos vivinho da Silva, o motoboy, festejando a abertura de mais uma filial de sua empresa de entregas rápidas:
 “Pernas para que te quero”. 
                                                                   Maira Garcia,

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Homem de lata.


É só um refrão sem pé nem cabeça,
mas antes que o dia anoiteça
pode for-matar um coração.

                                        Por Maira Garcia

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Páginas amarelas

Não escrevem um para o outro nas páginas amarelas.
É de lá que atendem
os sequiosos
do impresso
por palavras belas.

Nos acenos, olhos no espelho,
mostram o carimbo
de suas
mãos amarelas.
Por não sucumbir
a vontade das mãos
 e manter como são,
sãs,
as palavras que são belas.

                                                                     
                                                                       Por Maira Garcia

Homem sem idade.

Porque não tem idade,
            nem velho ateu ele é.
              Na minha fé eu vejo um branco negão até.
                                         
                 Maira Garcia
                    
Dedicado aos autores do samba "Velho ateu", que por ironia do destino, parece que não envelhecem.

sábado, 7 de julho de 2012

A saia da moça da Paraíba.

Kamal, o árabe de proporções tão grandes
que aqui não caberiam,
corria sempre atrás de saia,
mas todas saiam correndo, porque errava na mão.
Faltava alguma especiaria no tratar e assim elas não queriam.
A 25 de março já se fazia pequena para o grande Kamal,
filho do Salim rei dos tecidos.
Até que um dia, chegou da Paraíba Alzira, uma moça cujas cadeiras voavam
e os olhos verdes e cabelo de cereja lhe acertaram.
Acertaram ladeira abaixo, no porto, na geral, mas sem gol.
Da loja cheia de fantasias que a moça trabalhava,
a vista do Kamal ardia e a cabeça latejava.
Mas ela assim como as outras corriam, enquanto ele ignorava e a seguia.
Alzira franzia, ele chamava, ela recuava e assim dançaram
dias a fio e a cadeira da paraibaninha fugia e não quebrava.
Foram tantas as insistências que antes de qualquer saliência,
foi ter com o delegado da Sé a fazer um boletim de ocorrência.
Esclareceu que para prestar a queixa, primeiro precisaria acontecer
o que ela mais temia e que o filho do Salim era apenas de seguir
e todo mundo da 25 de março já sabia!
Dali há alguns dias, cansada das seguidas e sucessivas de Kamal,
deixou que se sentasse a mesa no restaurante aonde quase
todos ali almoçavam.
Ela paciente, tentando ser gentil, mesmo tensa de pescoço e arrepio.
Kamal apreensivo, e só pensando naquilo.
Juntaram os pratos um de frente para o outro.
Ela simulou um sorriso forçado e os olhos e a boca acompanharam.
E passou a sorrir tanto que nem ela acreditou.
Kamal que sempre corria atrás das saias dos mesmo tecidos que vendia,
deixou o prato cheio na mesa da moça tingido por aquele sorriso tão preciso.
Besta como todos somos quando ocorre o imprevisto, a moça foi acertada
em cheio, ficou assustada pois o homem sumiu vários dias sem ser visto.
Procurou Salim, e foram juntos à procura do filho, em hospitais, abrigos e tudo mais em volta.
Desolada, Alzira foi ter com o delegado para pedir o BO do Kamal
que sumiu sem ser seu namorado.
Chorando, foi lavrada a procura pelo árabe que corria atrás de saia,
mas fugiu da única que lhe sorria e nunca mais foi encontrado.
                                                                                        
                                                                                       Por Maira Garcia

Dedicado ao Kamal que sempre aparece para me contar causos de Abu El Abed quase toda sexta-feira num café perdido da cidade de São Paulo e Mia Couto cujas palavras me benzem
a cada leitura.                                                                        
                                                                       


quinta-feira, 5 de julho de 2012

Presente de Pirata.

Brincos de argola, formam um anel.
São pulseiras, ou algemas rumo ao céu?
De um lugar que não vou,
                          do olhar que não dou,
                                   da pessoa que não sou
                       e do seu rock and roll.
                                                         Por Maira Garcia

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Duas Luas


Sopra o vento, a noite escura.
a queimar doirada as esquinas do barco.
Ouve a toada toda em claro,
                        anunciando pelo mar 
                                a aparição das duas Luas.
             Maira Garcia

domingo, 1 de julho de 2012

Para des-ler.

E então gostara das palavras que não são de ninguém,
como as águas e farinha misturadas,
que sem saber o que vão ser
não são nada.
Não são de nada,
mas matam a fome de quem não tem o que comer.
                                                                       
                                                                            Por Maira Garcia