O jornaleiro

Ontem eu sonhei que te beijava,
antes entregava o Zero Hora,
depois me entregava.

Dor ação

Gratidão faz doar, 
ingratidão faz doer.

Seu Domingos

No domingo, Seu Domingos, primeiro pensa na segunda,
que na terça tem o terço, que na quarta tem o quarto,
que na quinta tem os quintos, que na sexta tem um cesto.
Seu Domingos tem o sábado de resguardo,
enquanto aguarda seus domingos.

Engaio-lar

Deixou de ver lá fora,
a passarada.
Quem mandou ouvir sabiá,
dentro de casa?

Maira Garcia

imagem de Felipe Pimenta /Turdus rufiventris - sabiá-laranjeira

Desalinho

As linhas da minha mão
dizem que não
mas desfiam,
desafiam o meio fio.
As linhas da minha mão
mudam todo dia,
procuram outras linhas
para fazer tapeçaria.

Maestros de libras

Nos gestos, rapsódias,
 feições, pontuando palavras,
 eles falam mais, sem canções.
 Quem é esperto no olhar,
 mesmo sem ler,
 ouve na coxia,
 no ventilar dos sinais,
 no tilintar do coração
 a dança nos dedos dos surdos.
 Sabem pelo olhar, se é de paz,
 ou de não,
 que ali vai, sem mais,
 carregando apenas com as mãos
 uma sinfonia.

A prenda

É necessário que se desprenda.
É necessário que se aprenda.

Hoje eu vou parar de parar.

Hoje eu vou parar de tomar café.
Hoje eu vou parar de tomar leite.
Hoje eu vou parar de comer pão de sal.
Hoje eu vou parar de comer frituras.
Hoje eu vou parar de comer chocolate.
Hoje eu vou parar de comer produtos industrializados.
Hoje eu vou parar de parar, pois não sei onde isso vai parar.

Mer-gulho

A gente se vira.
Na superfície barcos,
mergulhando,
 palafitas.

Em cartaz

Dormir, o ensaio do repouso do fim,
a esperar a grande estreia
de acordar para viver, e
recordar  para dormir.

Apagão

Ao pé da letra ajoelhou, 
e sem as vendas,
vendo o corpo dela se apagou.

Pelo e cabelo

Contra a vontade até o pelo sai, 
já com muita saudade é que o cabelo cai.

Sem toner

para cada piscadela,
um dilema,
um verso além mar,
um poema,
sem rumo,
sem toner,
sem dono.

Vermelhidão

Vergonha, que nem todo mundo sente,
é uma pena se não sente.
Vergonha, na boa medida,
 muda a direção e a vida
de muita gente.

Mastiga-ção

Pra mastigar, 
dúvida e cautela, 
que a força também faz a boca banguela.

Metro quadrado

Esse
pedaço
de céu é seu.

Par-tido

O coração quase breca,
mas não para, toda vez que um amor acaba. 
Quase quebra, mas não para.

O acaso discutindo

O azar não acredita na sorte.
A sorte disse que o azar é dele.

O espelhinho

O retrovisor é show.
Você segue em frente,
e o retrovisor mostra,
em algumas partes,
o que já foi,
o que já passou.

A primeira leitura da boneca Emília

Para que pudesse entendê-las, ficaram apertadas na cabeça.
Apertadas, pediam para tomarem ar.
Compreendidas, saíram pelos olhos, todas as letras.
Por culpa do rímel que usava, a impressão das palavras que pingavam, ficaram borradas.

Chega junto

Pontes foram feitas para abrir caminho,
pra ninguém acreditar,
que se vive sozinho.

Continua sorrindo

A Lua,
perdeu o brinco
do lado esquerdo,
e continua sorrindo.

Sírias

Sérias,

todas as histórias

de todas as Sírias,
cujas misérias da guerra asfixiam.

Sérias,

todas as histórias

de todas as Sírias,
que não precisam da bomba, 

que a promessa de paz lhe atira.

Não custa nada agradecer

Se alguém incomodar alguém,
 não custa nada agradecer a preferência,
 que sempre tem.

Venda-val

O mesmo vento que esvoaça os vestidos,
 carregam palavras
que tocam os ouvidos.

Remendo

Pode mudar o caminho de um rio,
que chega o dia que o rio chega.

Setembro

Amanhecem olhos que exalam flores de graça,
quando alguém passa,
em setembro.

atchim!

O mundo é aparentemente rude,
até alguém ouvir alguém espirrar, 
e outra pessoa dizer:
- Saúde!