faz dormir
ideias.
Poesia, textos e todas expressões que surgirem para partilhar, sempre depois que a Lua me tocar.
Os dedos mereciam luvas, mas a ideia de ter as extremidades gélidas lhe era agradável. Trazia uma jaqueta surrada, um velho jeans e chinelos de dedos. Um cobertor cinza cobria os pensamentos, mas tinha os dedos pra lembrar do tempo, de que trazia o cinza para deixá-lo transparente na paisagem. Quando isso acontecia lembrava dos dedos, dedos que contavam os dias num calendário de cartão de bolso, dedos que se juntavam pra enxergar o céu azul queimando a fronte. Dedos que rezavam, dedos que andavam, dedos que faziam figa, dedos que pediam comida. Dedos.
Quando ele nasceu, eu usava cabelo pela cintura, calça camuflada com coturno, não era do metal, dark, ou punk. Quando ele nasceu, eu ouvia o primeiro disco da Madonna, ganhava e perdia o primeiro amor, o rapaz mais bonito do colégio chamava Andreas Kisser, e a banda dele era Esfinge. Quando ele nasceu, eu me orgulhava de ser do ABC, de quase ter sido atropelada por ter visto o Suplicy
atravessar a rua para ir na gincana do meu colégio. Quando ele nasceu, eu tinha uma fitinha do The Clash, comprada numa lojinha da estação da Luz, para ouvir num walkman no trem. Quando ele
apareceu, com a barba por fazer, alguns
grisalhos e umas entradas, sobrancelha falha, marcas de expressão ao dar risada, eu jurava que ele tinha mais de trinta, e ele jurava que eu tinha menos de quarenta.
Quando ele nasceu eu morri.
Choro primeiro por dentro,
começa no ouvido,
sobe pra cabeça,
desce até o coração.
Do coração parte pros olhos,
salga a alma e as lágrimas caem.
Rio primeiro por fora,
começa no ouvido,
sobe pra cabeça,
desce até a barriga,
a mandíbula relaxa,
a garganta trepida,
convidando alguém pra dançar.
nova versão em 9 de junho de 2021
Eu queria que meus poemas fossem gatos. Que seus pelos aquecessem os verbos, lambessem as palavras, arranhassem o idioma, miassem agudamente no cio. Queria que meus poemas fossem curtidos como os gatos, invejo os gatos, que todos, quase todos amam. Queria que meus poemas encostassem nas pernas do leitor e subissem até o colo e fizessem dormir com afagos. Queria que meus poemas fossem gatos.
Ele não fala mais de amor,
perdeu a mão.
Diz que volta a falar
assim que entender
a questão
mais importante,
a que define
como vai ser a vida
das pessoas
depois das decisões
tomadas pelo poder.
Diz que volta quando
o amor tomar o lugar,
mal sabe ele que um dia
o amor tomará o poder,
mas até lá a gente vai morrer
pela demora.
Quem sabe ele desiste
de esperar a conclusão dos fatos,
e volte a falar de amor sem embaraço.
Ele é poeta, mas anda sofrendo
com tanta realidade, os homens
de terno dão remédio pra não dormir,
parou de sonhar,
esqueceu o verso
em algum lugar
do Congresso.
As calcinhas se rebelam dos sutiãs, as cuecas se enroscam nos fechos. O amaciante arremata a lavagem, as meias chutam o balde. Peças feitas para lavar à mão se desmotam na máquina de lavar roupa, algumas vezes por semana, embaixo dágua, perdem a sensualidade e o bom senso, vão se desgastando mais rápido que o tempo.
Um desocupado pelo mundo, frequentador de abrigos obscuros, ladeado de mantas cinzas a confundir a paisagem, em meio a peças de chão prateadas. Juntador de pequenas bobagens, miudezas glamourosas a alegrar a miséria numa caixa de papelão. Uma colher de sopa da Tramontina, um anel de plástico com pedra azul, um disquinho do Antônio Marcos, uma guia de Santo, um salmo 23 num calendário, dois dedos de perfume feminino da Avon, um espelhinho, uma lixa, escova de dentes e uma flanela.